A regulamentação do poder de polícia da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), feita por meio de um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), gerou mais um ponto de atrito entre o governo e a bancada do agro. Parlamentares buscam a derrubada do decreto para garantir que a medida não traga insegurança aos produtores rurais e mais conflitos no campo. A articulação envolve o novo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), que teria se mostrado disposto a debater o tema.
O dispositivo, publicado na segunda-feira (3), prevê que a Funai deve usar o poder de polícia para prevenir ameaças ou violações dos direitos dos indígenas, e evitar a ocupação ilegal de suas terras. O texto, no entanto, trouxe à tona uma série de questionamentos e controvérsias.
Para a bancada do agronegócio, o decreto pode motivar a violência contra proprietários de terras. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR), considerou a medida “claramente inconstitucional” e uma afronta ao direito de propriedade no Brasil. “Este decreto usurpa a competência do Poder Legislativo”, afirmou o parlamentar.
Dentre os questionamentos, está a possibilidade de aplicação do poder de polícia em todas as 631 terras indígenas listadas pela Funai. O decreto diz que o poder de polícia será aplicado “nas terras indígenas e nas áreas objeto de portaria de restrição de uso para a proteção dos direitos desses povos”.
Assim, não deixa claro se a atuação será somente nas áreas que já tiveram o processo demarcatório concluído e já estão devidamente homologadas ou em qualquer área, mesmo nas que ainda estão em estudo, por exemplo.
A reportagem da Gazeta do Povo tentou esclarecer esse ponto em contato com a Funai, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
Tendo em vista que os processos envolvem uma série de disputas judiciais pela posse das terras, o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), autor de um dos pedidos de sustação do decreto, destaca que o texto instiga uma luta desnecessária entre indígenas e agricultores. “A medida abre caminho para desrespeitar o direito de propriedade no país, colocando em risco a segurança jurídica no campo”, disse Moreira.
Bancada do agro articula derrubada do decreto
Pelo menos oito propostas já foram apresentadas por parlamentares que querem impedir que servidores da Funai possam exercer o poder de polícia nas terras indígenas.
O presidente da bancada do agro ressaltou que já iniciou negociações com líderes partidários e com o presidente da Câmara, Hugo Motta, para aprovar um requerimento de urgência e acelerar a tramitação para derrubada do decreto.
“A FPA vai encampar esse tema, já o incluindo na pauta da próxima reunião-almoço da FPA e mobilizando as assinaturas necessárias para aprovar essa urgência”, afirmou Lupion se referindo a evento previsto para terça-feira (11).
À Gazeta do Povo, o deputado Alceu Moreira afirmou que já conversou com Motta sobre a votação da proposta. Segundo ele, o presidente da Câmara teria demonstrado interesse em dialogar com o governo, com o intuito de corrigir o texto do decreto.
“Enquanto este decreto não for derrubado, terá conflito no campo. O texto é estapafúrdio, deveria ser mais específico. O que querem é tomar as terras [dos produtores] na mão grande”, enfatizou Moreira.
Moreira disse ainda que Motta teria sinalizado que a derrubada do decreto pode demorar já que terá que passar pelas comissões, que ainda não iniciaram os trabalhos neste ano. A Gazeta do Povo procurou a assessoria do presidente da Câmara para saber como se dará a tramitação da proposta, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
Alcance do poder de polícia da Funai causa insegurança jurídica
A possibilidade de o poder de polícia da Funai ser aplicado em terras indígenas que ainda não tenham finalizado o processo demarcatório tem alimentado a insegurança de proprietários de terras.
O procedimento demarcatório compreende cinco fases, que se iniciam com estudos de identificação e delimitação das áreas, a cargo da Funai, e só passam a ser constituídas como terras indígenas a partir da homologação, quando são publicados os limites da área, por meio de decreto presidencial.
Antes de serem homologadas, as áreas passam por uma série de processos administrativos em que há a possibilidade de contestação por parte de proprietários de terras. Assim, caso uma área privada seja delimitada como indígena, o proprietário pode contestar judicialmente a demarcação.
Os parlamentares têm apontado preocupação sobre a atuação da Funai em áreas ainda não homologadas. “Não me parece adequado dar um poder de polícia nestas condições, até para não haver um tensionamento ainda maior com produtores rurais que lutam pelo legítimo direito de propriedade. Nunca é demais lembrar que o Congresso Nacional aprovou recentemente a Lei do Marco Temporal”, disse o líder da oposição na Câmara, deputado Luciano Zucco (PL-RS).
Embora haja esse temor, o advogado constitucionalista Georges Humbert afirma que “o poder de polícia administrativo não se confunde com o poder de polícia de segurança pública, que é privativo de forças de segurança, isto é, das polícias federal, civil e militar”. Sendo assim, o entendimento de Humbert é de que, sob nenhuma hipótese, o poder de polícia conferido à Funai se aplica a áreas não homologadas ou cuja posse já esteja em favor de particular.
O advogado agrário Albenir Querubini, no entanto, aponta que o decreto é muito subjetivo e dá margem para a atuação da Funai com poder de polícia em áreas não homologadas. Ele destaca o trecho que diz que, “em caso de risco iminente aos direitos dos povos indígenas, a Funai poderá adotar medidas cautelares”. “[O decreto] fala em medidas cautelares quando verificado risco iminente. Quem define o risco?”, questiona Querubini.
Já o advogado indígena Ubiratan Maia opina que, com o decreto, as terras indígenas em qualquer fase do processo demarcatório podem ser alvo das ações dos servidores da Funai. “A Funai passa a ter poderes semelhantes aos do Ibama. Poderão chegar em qualquer área, junto da Força Nacional ou da Polícia Federal, e dizer ‘lacra, destrói, inutiliza’. Com isso, falta pouco para que eles tenham o porte de armas”, afirma Maia.
O poder de polícia previsto no decreto não garante que os servidores poderão portar armas de fogo. Para que isso ocorra, é preciso que um projeto inclua a categoria no rol previsto em lei específica. Uma proposta sobre o tema já tramita no Senado desde 2022. O texto prevê que servidores designados para atividades de fiscalização tenham o direito ao porte de arma, desde que esteja comprovada a aptidão técnica e psicológica para o uso de armamentos.
O que o governo diz sobre o poder de polícia da Funai
Em uma matéria publicada no site do Ministério dos Povos Indígenas, o governo federal argumentou que apenas regulamentou o que estava previsto na Lei nº 5.371/1967 e que o decreto foi feito para cumprir a determinação do ministro Luis Roberto Barroso, presidente do STF, na ADPF 709. De acordo com o Executivo, o direito à propriedade não será afetado.
“[…] O governo federal esclarece que o Decreto nº 12.373, de 31 de janeiro de 2025, não cria novos poderes para a Funai e, sim, apenas regulamenta o poder de polícia que a instituição já possui, conforme previsto na Lei nº 5.371/1967, que criou a Fundação. A norma está em total conformidade com o Estatuto do Índio, Lei nº 6.001/1973, a Lei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, e a Lei do marco temporal, 14.701/2023, e reforça o papel da Funai como órgão responsável pela fiscalização e proteção dos direitos indígenas.
“O MPI e a Funai reforçam que o Decreto não interfere no direito de propriedade e não afeta áreas privadas nem altera a produção rural legal. Ele apenas reforça a atuação da Funai exclusivamente dentro das Terras Indígenas, impedindo invasões, grilagem, exploração ilegal de recursos naturais, como desmatamento ilegal, e outras ameaças que já são proibidas pela Constituição […]”, diz um trecho da nota do governo.
Além disso, a gestão petista listou uma série de medidas cautelares que a Funai poderá adotar – com o decreto – nos casos em que considerar que há “risco iminente aos direitos dos povos indígenas”:
– Interditar ou restringir o acesso de terceiros a Terras Indígenas, por prazo determinado e prorrogável;
– Expedir notificação de medida cautelar a infratores, para lhes cientificar a respeito da infração cometida e estabelecer, se for o caso, prazo para sua cessação ou retirada voluntárias, sob pena da adoção subsequente de medidas administrativas ou judiciais coercitivas;
– Determinar a retirada compulsória de terceiros das Terras Indígenas quando houver evidência de prejuízo ou risco iminente para os povos ou para as Terras Indígenas;
– Restringir o acesso e o trânsito de terceiros nas Terras Indígenas e nas áreas em que se constate a presença de indígenas isolados, nos termos do disposto no art. 7º do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996;
– Solicitar a colaboração de autoridades de outros órgãos ou de entidades públicas de controle e repressão, respeitadas as respectivas competências legais;
– Apreender bens ou lacrar instalações de particulares empregados na prática de infração; e
– Realizar, excepcionalmente, a destruição, a inutilização ou a destinação de bens utilizados na prática de infração.