O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, afirmou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já não é mais um “player“, um ator importante, na negociação de paz com a Rússia. A afirmação coloca um ponto final nas pretensões de Lula de ser um mediador do conflito. O mesmo já havia acontecido em 2024 em relação a Israel, quando o presidente brasileiro recebeu o inédito título de persona non grata. Para analistas e diplomatas aposentados consultados pela Gazeta do Povo, o fracasso de Lula em se tornar um mediador internacional da paz é uma das consequências da ideologização que o petista deu à sua política externa.
A Ucrânia havia feito uma última tentativa de credenciar Lula como interlocutor importante no último dia 14. O chefe de gabinete do governo ucraniano Andrii Yermak convocou a imprensa brasileira para pedir ao Brasil que intermediasse o retorno de 20 mil crianças ucranianas levadas para adoção forçada na Rússia. O Itamaraty se desviou do assunto e disse que o tema já estava sendo tratado em um plano de paz de autoria da China.
Na quarta-feira (22), em uma entrevista à Rede Globo, Zelensky deixou claro que a Ucrânia não aceita mais Lula como mediador. Recusado por uma das partes beligerantes e sem poder militar, econômico ou laços culturais com as nações em guerra, o Brasil está, na prática, fora das discussões de paz. “Hoje eu acho que o trem do Brasil, para ser sincero, passou. Falei com Lula, nos encontramos e pedi que ele fosse um parceiro para acabar com a guerra. Agora ele não é mais um ‘player’. Ele também não será um ‘player’ para Trump”, disse o presidente ucraniano.
Lula tentou se lançar como um mediador do conflito em curso no Leste Europeu e chegou a sugerir em 2023 a criação de um “clube da paz” com outros países para buscar uma solução para a guerra. O mandatário brasileiro, contudo, começou a perder relevância nas mesas de negociações após dar declarações controversas e apontadas como favoráveis à Rússia, país que deu início ao conflito em 2022.
Visto como um dos apoiadores do ditador russo, Lula também não concordou em aderir ao Plano de Paz já proposto pela Ucrânia com base na Carta das Nações Unidas junto a outras nações democráticas do Ocidente. Em contraponto à proposta já existente, o petista produziu ao lado da China um novo acordo para um cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia. O documento, no entanto, é considerado favorável a Moscou por não prever a retirada de tropas russas do território ucraniano ou na devolução das áreas já ocupadas pela Rússia.
Neutralidade, um dos fundamentos do Itamaraty é colocada em xeque sob Lula
Para analistas, a tradicional neutralidade do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, tem sido afetada sob a gestão do presidente Lula, que é tido como alguém que já “tomou partido”.
Na avaliação do diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e em Londres, as declarações e posturas de Lula afastam o Itamaraty da sua tradicional neutralidade e colocam em xeque uma postura que é tida como uma ferramenta de soft power para o Brasil.
“Teve um desgaste do presidente [Lula] no exterior porque ele é visto como uma pessoa que já tomou partido, mas também na imagem do Itamaraty, devido à percepção de que o governo também tomou uma posição”, avalia Barbosa.
O Itamaraty se consolidou no cenário internacional pela sua postura diplomática e estratégica pautado pelos preceitos do Barão do Rio Branco, que chefiou a pasta entre 1902 e 1912. Considerado o pai da diplomacia brasileira, Rio Branco foi fundamental na resolução pacífica de disputas territoriais e na definição das fronteiras nacionais. Por anos, territórios disputados e que geraram conflitos com França, Uruguai e Argentina, foram delimitados por meio de intensas negociações conduzidas pelo barão.
Desde então, a via diplomática e a resolução de conflitos pela via pacífica e do diálogo se tornaram a luz do Ministério de Relações Exteriores. Essas resoluções também guiaram o Brasil para temas além das suas fronteiras, como guerras e conflitos, relações bilaterais e a postura brasileira em fóruns internacionais. Em questões delicadas, a neutralidade se sobressaia, para preservar o bom relacionamento com todos os países e visando a tradicional estratégia de manter as portas abertas para o comércio internacional.
Afastar o Brasil dessa tradicional postura, representa uma perda de prestígio internacional e a desintegração do Itamaraty. O Brasil, que não está entre as grandes potências internacionais por não possuir poder bélico, político e econômico para se posicionar como tal, tinha em seu posicionamento imparcial a capacidade de ser visto como um negociador e ator importante em questões de relevância internacional.
De acordo com o professor Elton Gomes, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI), a postura adotada por Lula afasta o Itamaraty dessa capacidade. “O Brasil não só não ganha nada muito substancial, como pode perder oportunidades importantes, tanto do ponto de vista do acesso a mercados e benefícios econômicos, como da relevância bastante considerável do soft power brasileiro: um país pacífico, sem conflito e que pode se oferecer como intermediador”, afirma o docente.
Lula adotou lados em conflitos na Europa e no Oriente Médio
Os últimos dois anos da gestão Lula 3 foram marcadas por declarações polêmicas e posições contraditórias do chefe do Executivo brasileiro em temas internacionais. Em um contexto geopolítico cada vez mais polarizado pela disputa entre China e Estados Unidos, Lula abandonou a tradicional imparcialidade brasileira e passou a se posicionar sobre assuntos sensíveis, como os conflitos em curso no mundo.
De forma incisiva, o petista deu declarações controversas sobre as guerras na Europa e no Oriente Médio, e caminhou na direção oposta do Itamaraty. Em relação ao conflito entre Rússia e Ucrânia, Lula fez críticas ao governo ucraniano e acusou o país de ser tão responsável pelo conflito quanto a Rússia. A guerra, no entanto, só teve início depois que Vladimir Putin ordenou que suas tropas invadissem e ocupassem o território ucraniano.
O Brasil ainda formulou, ao lado da China, uma proposta de cessar-fogo na Ucrânia que é vista como uma alternativa à solução já proposta pelo Ocidente. Volydymyr Zelensky já criticou o documento e questionou os reais interesses de China e Brasil por trás da proposta.
Lula também adotou um lado no conflito em curso no Oriente Médio entre Israel e os terroristas do Hamas e do Hezbollah. Em diversas oportunidades, condenou a contraofensiva do exército israelense na Faixa de Gaza e acusou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de cometer genocídio contra a população palestina que vive no enclave. A postura do mandatário brasileiro causou um ruído diplomático com Israel e o relacionamento entre os dois países está estremecido desde então.
Imparcialidade de Lula também afetou declarações oficiais do Itamaraty
Ainda que, tradicionalmente, o Itamaraty seja visto como uma pasta que atue de forma independente, os analistas e diplomatas ouvidos pela Gazeta do Povo explicam que é o presidente quem dá o tom da política externa ao país. O diplomata aposentado Paulo Roberto de Almeida, pontua ainda que os últimos meses deixaram evidente a influência do governo – e do Partido dos Trabalhadores (PT) – sobre a chancelaria brasileira.
“É lamentável que se tenha no Brasil uma diplomacia fragmentada e estilhaçada entre posturas corretas, legalistas e neutras tradicionais do Itamaraty; uma postura ousada do presidente em defesa de certas teses muito duvidosas no plano internacional e uma postura ativista do partido principal do governo, em contradição com as nossas tradições e com a própria postura da diplomacia brasileira”, elucida Paulo Roberto.
Nos últimos meses, o Ministério de Relações Exteriores também foi alvo de críticas. Em notas oficiais da pasta, analistas apontam a existência de uma diferença de tom para condenar ataques feitos por Israel e ataques feitos pelos terroristas. O mesmo se aplica para o conflito entre Rússia e Ucrânia.
Em um exemplo dessas diferenças, no dia 7 de outubro de 2023, após o ataque do Hamas contra Israel que deflagrou a escalada do conflito na região, o Itamaraty se posicionou dizendo que “condena a série de bombardeios e ataques terrestres realizados hoje em Israel a partir da Faixa de Gaza”. A nota não cita o grupo terrorista Hamas como os responsáveis pelo ataque.
Cerca de seis meses depois, no dia 13 de abril de 2024, após o Irã fazer um ataque com cerca de 300 drones e mísseis contra Israel, o Brasil não se manifestou condenando. Em nota, o Itamaraty afirmou, à época, “acompanha com grave preocupação, relatos de envio de drones e mísseis do Irã em direção a Israel”. O ataque, que foi interceptado pela defesa aérea israelense, foi o primeiro dessa natureza do Irã contra Israel.
Vale ressaltar que o Irã, país que recentemente passou a integrar os Brics (bloco de países emergentes inicialmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e agora também integra Egito, Emirados Árabes, Etiópia, Indonésia e Irã), é acusado de patrocinar e financiar grupos terroristas no Oriente Médio, como o Hamas, na Faixa de Gaza; o Hezbollah, no Líbano; e os Houthis, no Iêmen.
Por outro lado, a chancelaria brasileira adotou tons críticos para ataques realizados pelo exército israelense. No dia 23 de setembro de 2024, após a escalada da tensão entre Israel e os terroristas do Hezbollah, do Líbano, o Itamaraty afirmou que “condena nos mais fortes termos, os contínuos ataques aéreos israelenses contra áreas civis em Beirute”.
A mudança de tom também é observada para citar ataques à Ucrânia. No dia 8 de julho de 2024, após um ataque da Rússia a um hospital infantil na Ucrânia, o Itamaraty se manifestou dizendo que o Brasil “condena o bombardeio que atingiu hoje o hospital infantil Ohmatdyt, em Kiev [forma como os russos escrevem o nome da capital Kyiv]”. Assim como nos ataques do Hamas do dia 7 de outubro, o governo brasileiro também não cita a Rússia como responsável pelos ataques.
Cerca de quatro meses depois, no dia 18 de outubro, o posicionamento oficial do Brasil para citar um ataque do governo israelense contra um hospital na Faixa de Gaza foi incisivo contra Israel. “O governo brasileiro condena, de forma veemente, o bombardeio que atingiu o hospital Ahli-Arab, na Faixa de Gaza”, diz a nota.
O embaixador Rubens Barbosa pontua que, parte dessas notas, têm influência do Planalto e, consequentemente, do presidente e sua equipe. “Nas coisas técnicas, o Itamaraty tem mantido uma linha independente, de equidistância, e tem falado isso. Mas em casos isolados, a influência do Planalto é muito grande”, avalia o diplomata já aposentado.
Ideologização é marca da política externa de Lula desde seu segundo mandato
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, essa imparcialidade de Lula em temas de relações internacionais é uma marca de seu governo desde mandatos anteriores, especialmente seu segundo governo. “Antes disso, seguia-se [em governos brasileiros] uma linha de coerência na política externa porque prevalecia a assessoria do Itamaraty. A partir do segundo mandato, Lula começou a trazer uma influência ideológica partidária na política externa”, pontua Rubens Barbosa.
Os analistas relembram que no primeiro mandato, a política externa de Lula foi marcada pela integração regional, no fortalecimento do Mercosul e na aproximação comercial com os Estados Unidos e com as nações das Américas. Foi a partir de 2007 que Lula passou a tecer influência com tons ideológicos sobre o Ministério das Relações Exteriores.
Neste período, o governo do petista apostou na aproximação com países de esquerda, especialmente ditaduras latino-americanas como Cuba e Venezuela, e deu início a discursos que reivindicavam a criação de uma nova ordem global. Esse período ainda foi marcado pela criação da Unasul e dos Brics.
A Unasul foi um bloco regional fundado em 2008, por 12 presidentes sul-americanos da época que, em sua maioria, eram de esquerda. O bloco foi criado com a intenção de coordenar a utilização de recursos e mecanismos para aumentar o realinhamento social, econômico e político da região. O viés predominantemente de esquerda do bloco, contudo, inviabilizou sua existência e a Unasul foi desmembrada com a mudança do cenário político na América do Sul.
Os diplomatas aposentados ouvidos pela reportagem analisam que essa mudança da política externa de Lula foi influenciada pelos seus conselheiros, como o ex-assessor Marco Aurélio Garcia e o ex-chanceler Celso Amorim. Garcia, que nos dois primeiros mandatos de Lula ocupava o posto que hoje pertence a Amorim, era o mentor do mandatário para temas internacionais.
O ex-assessor, que morreu em 2017, foi dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e um dos defensores da integração Sul-Sul, da criação dos Brics, da Unasul e da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Celso Amorim, de perfil progressista que se assemelha ao de Marco Aurélio, durante os primeiros mandatos de Lula, era o ministro das Relações Exteriores. Juntos, os dois guiaram Lula e, posteriormente a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em sua política externa.
Atualmente, é Amorim quem desempenha esse papel no governo Lula. O diplomata de carreira, que também é filiado ao Partido dos Trabalhadores, hoje atua como um defensor da integração do Sul Global e aposta na aproximação do Brasil com os Brics. O bloco, que tem ganhado um caráter cada vez mais anti-Ocidente, é defendido pelo atual assessor para assuntos especiais de Lula. Amorim ainda é apontado como a figura que atuou para barrar a compra dos obuseiros israelenses (canhões) para o Exército Brasileiro.
“Tem exemplos da postura diplomática do Itamaraty, mas diretamente influenciados pelo governo Lula, que contrariam princípios e valores da tradição diplomática brasileira, como também contrariam princípios e valores da Constituição Brasileira e da Carta das Nações Unidas. Se nós temos que fazer um balanço de 2024 e de 2023 da política externa de Lula, é um prolongamento de posturas que contrariam os princípios e valores da diplomacia brasileira e do direito internacional”, avalia Paulo Roberto.