A busca pelos sabores do Brasil inevitavelmente esbarra nas tradições culinárias do Nordeste. A mistura de temperos e de heranças históricas com pitadas da criatividade brasileira resulta em pratos para lá de apetitosos, pontuados pelo trabalho de comunidades e de pequenos produtores.
Para a temporada especial CNN Viagem & Gastronomia: Sabores do Brasil, dei um pequeno mergulho no que podemos chamar de cozinha nordestina, com um recorte de sabores e ingredientes dos estados do Maranhão e da Bahia.
Mas um terceiro território entrou no radar e me surpreendeu com o leque de delícias culinárias: a Paraíba. Lar de quase 4 milhões de habitantes, o estado encanta além do litoral paradisíaco, indo do agreste, passando pelo cariri e chegando ao sertão, por exemplo.
Uma das maravilhas mais bem guardadas é justamente sua culinária, que é influenciada também por raízes indígenas e africanas. Ela se mescla com a cozinha nordestina, mas mantém particularidades irresistíveis.
Onildo Rocha e a cozinha armorial
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Para adentrar um pouco mais o mundo culinário que compõe a Paraíba, nada melhor do que ter a companhia do chef Onildo Rocha, paraibano que leva no coração – e no estômago – as tradições de sua terra.
Natural de João Pessoa, ele ajuda a traduzir a Paraíba para o resto do país, especialmente São Paulo, enquanto roda o Brasil em busca dos nossos sabores e ingredientes. E como ele coloca o Nordeste no prato?
“Por meio da riqueza e da diversidade. Cada região tem a sua influência e a Paraíba tem uma influência muito forte dos árabes também. Eles se esconderam muito no sertão na época em que estavam sendo perseguidos. Então temos essa influência de especiarias e usamos muito o cominho, por exemplo”, conta o chef enquanto invado a sua cozinha.
O fruto desse trabalho pode ser apreciado no Notiê, restaurante no centro da capital paulista recomendado pelo Guia Michelin e que funciona por temporadas, cada uma pautada por sabores regionais e biomas. Uma das temporadas foi “Sertões”, em que o chef serviu, por exemplo, uma releitura do cuscuz com cabrito, comida facilmente achada nas feiras paraibanas.
Cozido em baixa temperatura, o cabrito era glaceado com roti e vinha com minicenouras na brasa sobre uma passata de tomates. A criação era servida com cuscuz em cuscuzeira feita por artesãs de Itabaiana, na Paraíba.
Fica claro que o chef pega elementos populares do estado e os transforma em alta gastronomia. Um dos pontos mais interessantes é que ele traz para a cozinha ninguém menos do que Ariano Suassuna, intelectual paraibano e autor da peça “O Auto da Compadecida”.
Foi na literatura, através do Ariano, que consegui encontrar a Cozinha Armorial, que deriva do Manifesto Armorial. Assim, encontrei uma definição para a minha cozinha, que é elevar a cozinha nordestina do popular ao erudito
Onildo Rocha
Foi na década de 1970 que Suassuna fundou o movimento, cujo legado é fazer arte erudita a partir de elementos da cultura popular. Logo, o chef empresta este conceito proposto por Suassuna e o coloca no centro da mesa com ajuda da gastronomia.
O bode no buraco
Para a minha visita à cozinha do restaurante Notiê, Onildo organizou a bancada com uma variedade deliciosa de ingredientes e temperos, como uma pequena amostra do que a Paraíba tem de melhor. Arroz vermelho, pimentões, pimenta-de-cheiro, talinho e folha de coentro são alguns dos itens que reconheço.
O feijão verde também está ali, o que me faz lembrar que cada cantinho do país tem seu exemplar de feijão, como o feijão de corda, também muito consumido no Nordeste, e o feijão de Santarém, típico do oeste do Pará e do Baixo Amazonas.
Nos estudos para as gravações do CNN Viagem & Gastronomia, um dos pratos típicos paraibanos que mais foi citado foi o bode no buraco.
“É um preparo famosíssimo. É, na verdade, um cabrito que fazemos com legumes, pimenta de cheiro e maxixe, rodeado de temperos regionais. A carne é colocada em uma panela e enterrada em um buraco tampada com brasas, em que é deixada por 12 horas, virando uma panela de pressão. O resultado é um cozidão dentro do próprio caldo”, explica Onildo.
Porém, quando falamos na Paraíba, uma outra carne também entra em evidência. Falo da carne de sol, difundida em todo o Nordeste.
A carne de sol
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A carne de sol nada mais é do que um tradicional método de conservação, cujo processo envolve salgar e secar a carne, geralmente bovina. O sal grosso inicia a desidratação e o repouso é necessário para que o sal retire a umidade e penetre na carne.
O excesso de sal é retirado com a lavagem. A carne é então pendurada ou colocada em locais cobertos e ventilados para secar por dias, quando acontece a cura. Aqui entram algumas diferenças, ressaltadas por Onildo.
“Geralmente se faz uma confusão com a carne seca, a carne de sol e a carne de charque, que são coisas diferentes. A carne seca é um processo em que a carne de sol é muito mais desidratada, já que era levada para dentro no sertão. Já a carne de sol tem uma cor mais avermelhada, ela não é completamente seca”.
Entra na conta ainda o charque, que atravessa outra cultura e território. “O charque não faz parte da nossa cultura do Nordeste, ela é uma coisa do Sul”, diz. Ela é seca no sol, para durar mais tempo. Mesmo diferentes, é fato que todos estes processos acima são parte do caldeirão gastronômico do nosso Brasil.
Depois do papo na cozinha, minha visita ao chef foi finalizada à mesa. Os sabores do estado chegaram no prato na forma de uma receita de dar água na boca: Onildo preparou uma carne de sol selada, com ponto rosado ao meio, acompanhado de queijo coalho, feijão verde e arroz vermelho.
Não é exagero dizer que as garfadas me transportaram diretamente para a Paraíba, funcionando como uma passagem só de ida para o Nordeste.
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