(FOLHAPRESS) – “Charles é um menino adorável de 11 anos e estava sozinho em seu quarto.” “Xavier, meu querido, como você era bonito.” Mensagens tão ou mais apavorantes que essas foram encontradas nos arquivos do cirurgião Joël Le Scouarnec. Constam das centenas de milhares de páginas do maior processo por pedofilia da história da França, cujo julgamento começa nesta segunda (24) e deve durar quatro meses.
Le Scouarnec, 74, é acusado de estuprar e abusar de cerca de 300 menores ao longo de décadas. A média de idade das vítimas, no momento dos crimes, era de 11 anos. A maioria delas eram pacientes.
Pela dimensão, o julgamento está sendo comparado ao caso Gisèle Pelicot, a francesa drogada pelo marido e estuprada por 50 homens, todos condenados em dezembro a penas de prisão. Jornalistas do mundo inteiro vão acompanhar a audiência de hoje no tribunal de Vannes, na Bretanha, 450 km a oeste de Paris.
O caso suscitou um debate na França sobre as falhas institucionais que permitiram tantos anos de impunidade. Mesmo tendo sido condenado, em 2005, a quatro meses de prisão em regime aberto por posse de imagens de pedofilia, Le Scouarnec continuou transferindo-se de hospital em hospital sem que o histórico judicial o impedisse de ficar a sós com pacientes.
Em 2006, o equivalente francês do Conselho Regional de Medicina concluiu que a condenação não o impedia de exercer a profissão. Hoje as entidades da categoria afirmam ter adotado procedimentos mais rigorosos.
Separado desde 2004 (a ex-esposa afirma que nunca soube de nada), morando sozinho em um vilarejo de 3 mil habitantes, Le Scouarnec continuou trabalhando até 2017, quando foi denunciado por uma vizinha: sua filha, de seis anos, tinha lhe contado que o médico se masturbou e a penetrou com um dedo.
Na casa do acusado, a polícia apreendeu uma coleção de bonecas, apetrechos sexuais e milhares de arquivos digitais, com imagens pedófilas e uma espécie de diário no qual, segundo o volumoso inquérito, o cirurgião registrava nomes e idades das vítimas, datas e detalhes sórdidos dos crimes cometidos.
“Sou ao mesmo tempo exibicionista, voyeur, escatófilo [que se excita com excrementos] e pedófilo”, confessa o réu em uma das anotações.
Le Scouarnec foi condenado em 2020 a 15 anos de prisão por esse e outros três casos de violência sexual. Desde então, seus arquivos permitiram rastrear centenas de outras vítimas, o que levou ao novo julgamento.
Os relatos das vítimas, indefesas ante o domínio de um médico, se assemelham. “Eu achava que era errado, mas tinha a sensação de ser prisioneira”, contou uma delas, que tinha 9 anos quando foi paciente de Le Scouarnec.
O processo junta-se a outros crimes sexuais que têm abalado a França nos últimos anos, em diversas áreas, como ensino, religião e cultura. Vieram à tona escândalos envolvendo personalidades como o religioso Abbé (padre) Pierre (1912-2007), outrora a figura pública mais popular da França, por sua obra de caridade, e Gérard Depardieu, provavelmente o mais famoso ator francês.
Outro caso rumoroso no momento pode até derrubar o atual primeiro-ministro da França, François Bayrou. Envolve uma escola católica em Lestelle-Bétharram, cidade vizinha ao santuário de Lourdes, no sul da França. Religiosos são acusados de agredir e estuprar alunos ao longo de décadas.
A mulher de Bayrou foi catequista, e filhos do casal, alunos na instituição. O premiê é acusado de omissão quando era ministro da Educação, nos anos 1990, e as primeiras denúncias vieram à tona. Bayrou nega, mas o site investigativo Médiapart publicou evidências de que ele sabia mais do que admite hoje.
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ESCÂNDALOS RECENTES NA FRANÇA
Caso Pelicot
Em dezembro, Dominique Pelicot e 50 homens foram condenados (de 3 a 20 anos de prisão) por estuprar a mulher de Dominique, Gisèle, desacordada com tranquilizantes. Gisèle se tornou símbolo da luta contra a violência doméstica
Abbé Pierre
Após sua morte, em 2007, foi revelado que o religioso mais popular da França abusou sexualmente de dezenas de mulheres. A instituição de caridade fundada por ele teve que mudar de nome
Caso Bétharram
Violências físicas e sexuais foram cometidas em uma escola católica durante décadas. O atual primeiro-ministro, François Bayrou, cujos filhos estudaram na escola, é suspeito de omissão
Cinema
O ator Gérard Depardieu e os diretores Jacques Doillon e Benoît Jacquot são acusados de violência sexual contra atrizes. Eles negam. Em março, Depardieu será julgado por um caso de 2021
Literatura
Antes celebrado no meio literário parisiense por obras em que descreve relações com menores de idade, o romancista Gabriel Matzneff, 88, hoje é acusado de participação em uma rede internacional de pedófilos
Ensino superior
Olivier Duhamel, diretor de Sciences Po, faculdade de ciência política mais renomada da França, renunciou em 2021, acusado de ter abusado nos anos 1980 do enteado de 13 anos
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