O Supremo Tribunal Federal (STF) deve continuar a julgar, nesta quarta-feira (5), a ADPF 635, ação que proibiu operações policiais em favelas do Rio de Janeiro.
O julgamento tinha sido suspenso em novembro, após o tribunal ouvir sustentações orais da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) e da Educafro, entre outras entidades, além de representantes do estado do Rio de Janeiro.
Na sessão marcada para a quarta-feira (5), o STF decide se confirma definitivamente ou revoga as decisões anteriores tomadas ao longo do processo, nas quais restringiu a atuação das autoridades fluminenses e definiu contornos para as políticas de segurança pública no estado.
Decisões que serão reavaliadas
Originalmente, em junho de 2020, o relator, ministro Edson Fachin, tinha proibido operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia — permitidas apenas “em hipóteses absolutamente excepcionais”, conforme definido pelo ministro, e com comunicação ao Ministério Público estadual (MP-RJ) antes de cada operação.
Em decisões posteriores, o STF determinou a instalação de câmeras nas fardas dos policiais, proibiu o uso de helicópteros pela polícia como plataforma de tiro, reintroduziu critérios de remuneração dos policiais que premiavam a redução de estatísticas de mortes em confronto com a polícia e ordenou que o governo do Rio de Janeiro apresentasse ao tribunal, em até 90 dias, um plano de redução da letalidade policial, com cronograma e previsão financeira. Foi criado um observatório judicial para supervisionar o cumprimento das decisões, ligado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A ação fora originalmente proposta pelo PSB em 2019 em reação à atuação do então governador Wilson Witzel (PSC), político conservador então recém-eleito com base em plataforma de atuação linha-dura na segurança pública.
Entre os pedidos do PSB que acabaram não sendo atendidos pelo STF, estava o de que o tribunal proibisse o governador de proferir “discurso beligerante” em matéria de segurança pública, visto pelo partido como potencial incentivador de violência policial. Nas palavras do partido, “são palavras que espalham o ódio e ajudam a matar”.
Efeitos sobre a segurança pública
Tanto o governador Cláudio Castro (PL) quanto o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), principal adversário de Witzel na eleição de 2018, se posicionaram contra as restrições impostas pelo STF na APDF 635.
Em coletiva de imprensa no último dia 24 de janeiro, Paes opinou que a ação do STF seria contraproducente para o objetivo pretendido de reduzir a violência: “Desde que essa ADPF foi implantada, você teve um aumento do domínio territorial [do crime organizado]”. O prefeito chegou a dizer que a ADPF gerava “uma sensação de resort do crime”.
Outro crítico da APDF 635 é Roberto Motta, ex-secretário executivo do Conselho de Segurança no governo Witzel e colunista da Gazeta do Povo. Pesquisador da área de segurança pública, Motta é autor de livro em que busca atribuir o aumento da criminalidade no Brasil à insuficiência da repressão do crime pelo Estado.
À reportagem, Motta afirmou que a ADPF 635 faria “parte do quadro geral de garantismo penal e obsessão com desencarceramento, controle policial e descriminação das drogas que domina o discurso oficial”. Segundo ele, “essa visão entrou na prática jurídica através da ‘criminologia crítica’, uma leitura marxista do direito penal” que enxergaria o combate ao crime como uma manifestação da luta de classes, na qual a polícia ocuparia o lugar de “força opressora”.
Motta contrasta as medidas da APDF com outro episódio de intervenção de Brasília na segurança pública do Rio de Janeiro, que foi a intervenção federal de 2018, decretada pelo então presidente Michel Temer. Motta, que atuou pessoalmente coordenando a transferência de poderes do Gabinete de Intervenção Federal para as secretarias do novo governo estadual eleito, afirma que a intervenção de Temer foi “praticamente o oposto da APDF”. Segundo o ex-secretário, ela teria fortalecido as polícias e “realizou inúmeras operações de enfrentamento ao crime”.
Juristas enxergam ativismo judicial
A ADPF 635 está entre as ações nas quais o STF avalia a existência de “omissão inconstitucional” de outro poder da República, situação que autorizaria o Judiciário a agir em substituição do poder considerado omisso, para cumprir princípios da Constituição.
O advogado Ricardo Peake Braga, autor “Juristocracia e o fim da democracia”, considera problemático o conceito: “Muitas vezes o que o STF diz ser ‘omissão’ legislativa é na verdade uma opção do Poder Legislativo em não legislar sobre determinado tema”.
Segundo Braga, o mesmo se aplica ao Poder Executivo, que é a quem caberia tomar decisões sobre as políticas concretas a adotar. Braga opina que, invocando a ideia da omissão inconstitucional, “o STF está extrapolando seus poderes, contra a Constituição, arvorando-se em avaliador e formulador de políticas públicas”.
Marcelo Rocha Monteiro, promotor de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro, esclarece que é papel esperado do Judiciário invalidar decretos e outros atos do Executivo, quando descumprem o texto da Constituição.
No entanto, Monteiro explica que a Constituição prevê muitos objetivos que os governantes devem cumprir — como proteger a vida e a segurança pública —, e que a autonomia do Executivo está justamente em definir os melhores métodos para cumprir os objetivos postos. Para Monteiro, o ativismo judicial estaria caracterizado quando o Judiciário atravessa essa fronteira e passa a atuar na definição de políticas concretas.
STF já usou ativismo judicial para endurecer a política criminal
Decisões proferidas com base em “omissão inconstitucional”, como na ADPF 635, tiveram crescimento sem precedentes a partir de 2019, ano de posse dos políticos eleitos em 2018, em votação que foi amplamente vista pela imprensa como palco de uma “onda conservadora” na presidência, nos governos estaduais e no Congresso.
Na ADPF 635, o STF tem insinuado que o Estado do Rio de Janeiro vem praticando medidas excessivas de repressão criminal e que a “omissão inconstitucional” estaria em não “promover políticas públicas de redução da letalidade policial” .
No entanto, Braga esclarece que o conceito pode ser aplicado para os dois lados, e que nada impede que também seja utilizado pelo Judiciário para endurecer a repressão criminal.
Em 2019, por exemplo, o STF deu decisão inversa, considerando que o Congresso Nacional estava praticando “omissão inconstitucional” justamente ao não fazer repressão criminal o suficiente, ao não editar lei instituindo a homofobia como crime a ser perseguido pelas autoridades brasileiras. A decisão foi controversa entre juristas por ordenar que os cidadãos fossem potencialmente processados e punidos por crime não previsto em lei.
Em seu voto, o ministro Luiz Fux citou como argumento a possibilidade de que o então presidente recém-eleito Jair Bolsonaro vetasse eventual lei que o Congresso aprovasse criminalizando a homofobia, situação que seria impossível se a criminalização fosse feita pelo Judiciário, como acabou sendo.
Assim como na ação envolvendo o Rio de Janeiro, os ministros alegaram que a suposta omissão do Poder Público em criminalizar a homofobia estaria custando vidas; desta vez, com base na premissa de que palavras causam mortes ao reforçarem preconceitos. Na argumentação, os ministros usaram estatísticas falsas de mortes por homofobia no Brasil, como mostrou a Gazeta do Povo.