Os 14 inquéritos remetidos ao Supremo Tribunal Federal (STF) que apuram uma série de possíveis irregularidades em emendas parlamentares podem parar todos, ou a maioria, nas mãos de um único ministro, Flávio Dino. Neste momento, as ações estão distribuídas entre seis magistrados: Cristiano Zanin, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Nunes Marques e o próprio Dino.
Juristas, a própria Polícia Federal responsável pelas investigações e uma ala do STF defendem que inquéritos sobre as emendas que tratem de um mesmo tema devam ser remetidos a um mesmo relator, seguindo o princípio da prevenção, previsto no Regimento Interno da corte, em seu artigo 69. Esse princípio determina que, quando um ministro já está responsável por um processo ou investigação, ele se torna o relator de casos conexos, ou seja, em casos que tenham relação com os fatos ou envolvidos.
Advogados ouvidos pela Gazeta do Povo, porém, consideram que tal concentração dos casos com Dino pode gerar um alerta de suspeição do ministro quanto a julgar processos que possam envolver pessoas próximas, sobretudo com suspeitas ou a possibilidade de incluírem personalidades ou políticos do entorno de Dino, ou mesmo, em ações que possam prejudicar o governo Lula (PT), que foi quem o indicou à cadeira na Corte.
Dino foi ministro da Justiça e Segurança Pública do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deputado federal, senador, governador do Maranhão e filiado ao PSB e PCdoB. Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, remeter ou redesignar todos os processos relativos às emendas parlamentares a um único ministro poderia caracterizar conflito de interesses.
“Seria o caso, por exemplo, de investigações ou decisões envolvendo parlamentares com quem o ministro já trabalhou ou teve algum tipo de relação próxima. Para esses casos, nos quais haveria suspeição ou impedimento do ministro Dino, entendo que deveria haver necessariamente desmembramento do inquérito, distribuindo a parte que se refere a esses parlamentares a outro ministro da Corte”, alerta.
Somado a isso, o advogado especialista em Direito Público Márcio Nunes afirma que há um risco em concentrar muitos poderes nas mãos de um mesmo magistrado, ampliando a possibilidade de decisões monocráticas tidas como arbitrárias, a exemplo do que ocorre com o inquérito das fake news (Inq 4.781), que ficou conhecido como “inquérito do fim do mundo”, instaurado em 2019 e até hoje sem um desfecho. A investigação é criticada por ter dado amplos poderes ao relator, o ministro Alexandre de Moraes, que acabou concentrando diversas ações contra políticos, empresários e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Não se pode permitir que ocorra com as investigações das emendas que todos os inquéritos sejam remetidos a Dino se tiverem políticos próximos ou do escopo político/partidário do ministro. É preciso manter a vigilância”, destaca Nunes. Esses inquéritos vêm sendo remetidos ao STF porque há suspeitas da participação de congressistas, ou seja, políticos com foro privilegiado.
A suspeição de um magistrado está prevista no artigo 145 do Código de Processo Civil. Pela norma, um juiz deve se declarar suspeito, ou algum interessado assim manifestar à Corte, caso o ministro tenha vínculo de amizade íntima ou inimizade com alguma das partes ou seus advogados. A regra inclui ainda situações em que o juiz tenha interesse pessoal no julgamento da causa. Nesses casos, ele pode se declarar suspeito por foro íntimo, sem a necessidade de justificar a decisão.
Barroso quer saber porque investigação da Bahia não foi para Flávio Dino
Na última semana, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, pediu que a Secretaria Judiciária preste “informações técnicas para subsidiar análise sobre a relatoria da operação Overclean, que investiga supostos desvios de verbas de emendas parlamentares na Bahia”.
Isso porque o inquérito, enviado na semana anterior ao Supremo, foi destinado ao ministro Nunes Marques depois que o presidente em exercício, Edson Fachin, designou a relatoria por sorteio, o que teria desagrado Dino.
“A questão é avaliar se o caso deve ser redistribuído ao ministro Flávio Dino, relator de processos que também apuram suspeitas de irregularidades na distribuição de emendas”, descreve o STF. O caso teria, no entendimento de Barroso, ligação com outros sobre o tema em apuração por Dino, apesar de a redistribuição ser considerada improvável por interlocutores da Corte. Barroso pediu que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, se manifeste sobre essa questão.
O inquérito é resultado da operação deflagrada pela PF na Bahia no fim de 2024. A Justiça Federal do estado encaminhou ao STF após as investigações apontarem a possível atuação do deputado federal Elmar Nascimento (União-BA). Uma assessora parlamentar do senador Davi Alcolumbre (União-BA) também aparece nas investigações, suspeita de articular a liberação de uma emenda de R$ 14 milhões que deveria ser direcionada ao município de Juazeiro do Norte.
Um primo do deputado Elmar Nascimento foi preso durante a operação. Quando percebeu que a PF chegava à residência, tentou se livrar de uma mala com R$ 200 mil em espécie, jogando-a pela janela. O deputado e o senador não responderam ao pedido de entrevista feito pela Gazeta do Povo.
A própria Polícia Federal pediu ao STF, em dois momentos, que o inquérito referente ao caso seja enviado, por prevenção, ao ministro Flávio Dino, por ter atuado nos processos relativos às emendas parlamentares em outras apurações.
Inquéritos vão além de suspeitas de desvios de recursos
Os inquéritos, todos sob sigilo, vão além das suspeitas de desvio de recursos bilionários das emendas parlamentares. As investigações apontam para sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, peculato, corrupção ativa e passiva, direcionamento de licitações e até a suspeitas de envolvimento direto entre operadores com o crime organizado na compra de votos nas eleições de 2024, a partir de recursos desviados dos cofres públicos.
No Ceará, por exemplo, a Polícia Federal (PF) encontrou evidências de que a maior facção criminosa do estado participou da compra de votos e coação de candidatos e eleitores em um esquema que começou a ser desvendado nas eleições municipais do ano passado.
Nos mais diferentes casos, as investigações apontam, segundo fontes ligadas às apurações, suspeitas de desvios de recursos em pelo menos 17 estados brasileiros, com cifras bilionárias e nomes de parlamentares que ainda estão sendo mantidos em sigilo. Fontes ligadas às apurações relataram à Gazeta do Povo que a relação com nomes e suspeitas é extensa e pode provocar uma devassa jurídica no Congresso.
O que as investigações das emendas revelam até o momento
O deputado petista não respondeu ao pedido de entrevista feito pela Gazeta do Povo, mas tem afirmado que não tem qualquer envolvimento com os fatos e não teve reuniões ou encontros com os supostos intermediadores para liberação da emenda. O deputado José Guimarães não é oficialmente investigado.
Fontes ligadas às investigações confirmam, no entanto, que a apuração do Ceará envolve outros políticos, como o deputado federal Júnior Mano (PSB-CE), que operaria na liberação de verbas por emendas e receberia parte dos recursos de volta, além de políticos locais, empresários, laranjas e até o crime organizado.
O deputado federal é investigado pela PF e, além da suspeita de envolvimento no esquema de desvio de emendas parlamentares, as apurações querem saber se houve manipulação eleitoral com compras de votos em 51 municípios do estado. A investigação indica, por ora, que o parlamentar teria um “papel central” na destinação irregular dos recursos também para este fim. Tudo consta em um relatório da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco).
O caso está sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes e, por ora, não há pedido da PF para que ele passe para o gabinete de Dino. Apesar de não responder ao pedido de entrevistas feito pela Gazeta do Povo, a defesa de Júnior Mano tem dito que confia na comprovação da inocência do parlamentar. A assessoria do parlamentar não pretende comentar o caso, sob a alegação que está sob sigilo.
Ex-prefeita denunciou esquema de desvio de recursos no Ceará
O esquema no estado do Ceará começou a ser apurado após denúncia, de acordo com o inquérito da PF, da ex-prefeita de Canindé, Maria do Rosário Ximenes. Ela procurou o Ministério Público do Ceará (MPCE) durante a campanha eleitoral de 2024. Segundo ela, o grupo, supostamente liderado pelo prefeito eleito de Choró, Carlos Alberto Queiroz Pereira, o Bebeto Queiroz (PSB), atuava com a participação de empresários e utilizava recursos públicos – vindos de emendas – para compra de votos e lavagem de dinheiro por meio de empresas de fachada em operação em pelo menos 51 dos 184 municípios do estado.
A Gazeta do Povo apurou que a ex-prefeita acusou o grupo de ter movimentado cerca de R$ 58 milhões em ações ilícitas, incluindo a manipulação de processos licitatórios para beneficiar empresas ligadas ao suposto esquema.
De acordo com o depoimento de Maria do Rosário, o esquema começava com o repasse de emendas parlamentares do deputado Júnior Mano para prefeituras cearenses parceiras. Durante os processos licitatórios, empresas ligadas ao grupo de Bebeto Queiroz apresentavam os menores preços, mas operavam para retirar concorrentes dos certames, não concluíam os serviços contratados, utilizando os recursos para financiar campanhas eleitorais, e solicitavam mais verbas para dar prosseguimento às obras ou serviços.
Bebeto, eleito prefeito de Choró em 2024, foi alvo de operações da PF no início de dezembro e está foragido da Justiça. Ele havia sido preso por 10 dias em novembro de 2024 e voltou a ser alvo da PF em dezembro de 2024, durante o desdobramento da operação Vis Occulta. Apesar das acusações, o político afirmou na primeira vez que foi alvo dos investigadores que era inocente.
Vigia com salário de R$ 2,4 mil é dono de empresa com capital social de R$ 8,5 milhões
As investigações sobre a suposta compra de votos em 51 municípios do Ceará nas eleições de outubro de 2024 a partir de recursos desviados das emendas indicam ainda para um possível esquema de lavagem de dinheiro com empresas fantasmas.
Durante as diligências, a Polícia Federal identificou que um vigia de 37 anos com um salário de R$ 2,4 mil é proprietário da MK Serviços em Construção e Transporte Escolar Ltda., empresa registrada com um capital social de R$ 8,5 milhões e que acumulou contratos com 47 prefeituras no valor próximo de R$ 319 milhões. A Gazeta do Povo tentou contato com um representante legal da empresa, mas até a publicação da reportagem não obteve retorno. O espaço segue aberto.
Para a PF, não há elementos que justifiquem a capacidade financeira do vigia para constituir e gerir a empresa, apontando indícios de que ele seria um “laranja” no esquema, possivelmente ligado a Bebeto. A PF acredita que ele seria o verdadeiro dono da MK.
Apesar de eleito em outubro como prefeito de Choró, Bebeto nem seu vice tomaram posse após decisão da Justiça Eleitoral. A reportagem não conseguiu contato coma a defesa de Bebeto.
A denúncia relacionada que está no STF destaca que o suposto esquema envolveria empresários e políticos, incluindo, mais uma vez, o deputado federal Júnior Mano, citado como articulador do desvio de emendas para financiar campanhas e consolidar apoios políticos no estado.
A PF ligou as pontas nas investigações depois da análise do celular do vigia, dono da empresa de transportes. O aparelho foi apreendido com outros elementos suspeitos, como uma máquina de contar dinheiro encontrada na sede da MK. Em outra apreensão no ano passado, R$ 600 mil em espécie foram localizados no veículo de um policial militar que seria contratado para fazer saques bancários em volumes vultosos, solicitados pelo suposto dono da MK. Para a PF, pode haver indício de direcionamento de Bebeto no ordenamento dos saques.
Em outra operação, chamada de Camisa 7, deflagrada também pela PF no ano passado, houve buscas em endereços ligados a Bebeto do Choró e à MK Transportes. Em uma das ações, Bebeto tentou destruir seu celular jogando-o em um espelho d’água, mas o aparelho foi recuperado pelos agentes. A PF segue analisando o aparelho, os contratos firmados pela MK com municípios e outras empresas suspeitas de envolvimento no esquema.
Maior organização criminosa do Ceará estaria envolvida
Além de lavagem de dinheiro, financiar campanhas eleitorais, corrupção e manipulação de processos licitatórios, as investigações no Ceará levaram também à maior organização criminosa em operação no estado, a Guardiões do Estado (GDE), considerada uma das mais violentas no estado.
Além de controlar o tráfico de drogas na região, a GDE estaria envolvida diretamente no processo eleitoral, intimidando adversários e utilizando sua influência territorial em áreas de domínio para promover candidatos aliados. Segundo a PF, foram encontradas menções explícitas da ligação de políticos locais envolvidos nos supostos desvios de emendas parlamentares e a facção, inclusive em materiais de campanha que citavam candidatos e a organização criminosa.
A PF encontrou e enviou ao STF evidências do uso de recursos das emendas, destinado à organização criminosa, para promover a compra de votos e a coação, tanto de candidatos adversários, como a determinação a moradores em quem deveriam votar.
Especialistas apontam que a infiltração de organizações criminosas na política é facilitada pela falta de fiscalização rigorosa na destinação de emendas parlamentares, permitindo que recursos destinados a obras públicas e programas sociais sejam apropriados por grupos que utilizam essas verbas para ampliar seu poder e influência.
“Sem um controle mais rígido, a relação entre política e crime tende a se aprofundar, trazendo consequências graves para a democracia e a segurança pública”, alerta o advogado especialista em segurança pública, Alex Erno Breunig.
No meio político se espera ainda neste semestre uma série de operações da Polícia Federal, autorizadas pelo STF, contra parlamentares suspeitos de integrarem os diferentes esquemas.