Militares brasileiros que integram as tropas de paz da ONU na República Democrática do Congo (RDC), na África Central, relataram à Gazeta do Povo que estão alocados em bunkers na capital do país, Goma, onde a segurança local é considerada de alto risco. A cidade vem sendo duramente atacada desde o fim de semana por rebeldes e forças do Exército de Ruanda que, segundo o governo congolês, pretendem anexar partes do território leste do país.
Os cinco brasileiros integram a Missão das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrática do Congo (Monusco) e disseram que estão bem e possuem alimentos, mas precisam racioná-los, porque durante o conflito não há a possibilidade de reabastecimento. Os brasileiros disseram ainda que aguardam orientações da ONU para atuação externa, nas ruas de Goma.
“Além dos conflitos perpetrados por diversos grupos armados que assolam o leste da RDC, onde a Monusco está desdobrada, em Goma, o ambiente está volátil e inseguro. Para minimizar o risco, a Monusco tem implementado medidas adicionais de segurança. No momento, não podemos sair das bases e temos que ocupar os bunkers de proteção”, descreveram os militares por e-mail.
Eles relataram que precisam usar capacetes e coletes balísticos permanentemente e que algumas tropas estão reforçando a segurança das bases.
“A ONU prepara bem a estrutura de suas bases, para justamente enfrentar momentos de crise. Não tem faltado suprimentos, como água e comida. Porém, durante os combates não é possível ter ressuprimento [reabastecimento] das bases e temos que racionar, até que a situação permita o [novo acesso] a suprimentos”, descreve o grupo.
A missão da ONU na República Democrática do Congo tem mais de 25 anos e o Brasil tem contribuído sistematicamente com militares. Desde 2013 a maioria dos comandantes da Força da Monusco tem sido oficiais generais do Exército Brasileiro. Em 28 de janeiro, o secretário-Geral das Nações Unidas, Antônio Guterres, anunciou a designação do general de Divisão do Exército Brasileiro, Ulisses de Mesquita Gomes, como o novo comandante da Força da Monusco.
Não há previsão de evacuação do local
O Exército Brasileiro afirmou que durante o combate, muitas bases foram atingidas por disparos de armas de fogo e artilharia e enfrentam danos em sua infraestrutura.
“Apoiar a população que busca refúgio nas bases e receber os combatentes que se rendem têm sido um grande desafio, pois as estruturas das bases não estão dimensionadas para receber muitas pessoas ao mesmo tempo, podendo desencadear uma crise sanitária a qual a Monusco tem se empenhado para resolver”, disse o Exército Brasileiro.
Não há previsão de evacuação do local pelos militares da missão, pois ela teve seu mandato estendido pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas até dezembro de 2025.
O fechamento do aeroporto de Goma é outra preocupação elencada pelos brasileiros. Eles disseram que isso causa um impacto significativo para a missão diante da carência profunda de vias de transporte terrestre e as vias aquáticas são pouco exploradas na região.
“Os militares brasileiros são muito bem preparados para enfrentar os desafios das Missões de Paz, o que facilita a nossa adaptação de uma situação de paz para uma situação de conflito violento. Temos conseguido manter o condicionamento físico e psicológico”, relataram os brasileiros no Congo.
“Temos contato com as famílias, por meio dos meios de comunicações disponíveis (celular, internet), que, embora precários, ainda funcionam, assim como por meio da estrutura do serviço social das Forças Armadas, que fornecem apoio às famílias dos militares que se encontram em missão no exterior”, informam nesta quinta-feira.
Nenhum militar brasileiro foi morto no conflito
A crise no Congo vem escalando desde o domingo (26) quando tropas do movimento rebelde M23, de etnia Tutsi, apoiados pelas Forças Armadas de Ruanda, invadiram Goma que é a maior cidade do leste do país, com um milhão de habitantes.
Desde então, mais de uma dezena de militares da ONU foram mortos nos combates. Nenhum deles é brasileiro. Um dos mortos, no entanto, integra o chamado Batalhão do Uruguai no qual o Brasil tem dois militares servindo. Outros três brasileiros integram o Estado-Maior da Monusco.
Além dos cinco militares localizados em Goma, o Brasil enviou ao país dez instrutores de guerra na selva na cidade de Beni, que, até o momento, não foi atingida pelos confrontos no Congo. A missão desses profissionais é capacitar o exército congolês. De acordo com o Exército Brasileiro, todos seguem em segurança.
O Ministério das Relações Exteriores disse estar preocupado com a deterioração da situação humanitária e pediu que o governo congolês tome medidas para controlar a crise. Além da embaixada brasileira, representações de França, EUA, Uganda, Quênia e Ruanda também foram atacadas.
Região é a única onde os capacetes azuis formam uma força ofensiva
Os capacetes azuis da ONU estão diretamente envolvidos nos combates ao lado do Exército da República Democrática do Congo contra os rebeldes do M23 e as forças militares de Ruanda. A RDC é o único país onde as tropas da ONU atuam de maneira ofensiva, utilizando artilharia e infantaria nos arredores da cidade. Apesar dos esforços, não conseguiram impedir a invasão no último domingo.
A incursão violou um acordo de cessar-fogo vigente desde 31 de julho do ano passado. O governo de Ruanda justifica suas ações alegando que busca eliminar integrantes do grupo rebelde FDLR, de etnia hutu, que opera a partir do Congo e se opõe ao governo ruandês. Parte desse grupo foi responsável pelo genocídio de tutsis em 1994. O atual conflito é reflexo desse evento histórico, além da disputa por recursos naturais como ouro, estanho e tântalo.
Em 2012, o M23 chegou a tomar temporariamente a cidade de Goma, mas se retirou após um acordo de cessar-fogo. Localizada na fronteira entre a RDC e Ruanda, a cidade tem sido um ponto estratégico nos confrontos.
Em 2013, sob o comando do general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz, forças da ONU garantiram o controle de Goma e praticamente desmantelaram o M23 no ano seguinte, levando à rendição do grupo, que já contava com apoio militar de Ruanda. Anos depois, Santos Cruz atuou como ministro no governo de Jair Bolsonaro (PL), mas deixou o cargo em desacordo com o então presidente.
Após a desmobilização do M23 em 2014, obstáculos políticos impediram que a ONU avançasse no processo de pacificação. O general Santos Cruz, por exemplo, não recebeu autorização para combater o FDLR, que era inimigo do M23 e do governo de Ruanda, além de diversos outros grupos rebeldes menores. Na década seguinte, o M23 se reorganizou com o apoio de Ruanda e retomou os ataques contra o FDLR e o Exército congolês, desencadeando a atual crise.
O Brasil tem contribuído com comandantes e oficiais do Estado-Maior na Missão da ONU para a Estabilização na RDC (Monusco), mas sua participação em tropas de combate sempre foi limitada, um papel assumido principalmente pela África do Sul, que mantém rivalidade política com Ruanda.